A fachada é discreta, nada diferente
de um endereço comum em um bucólico bairro de classe média carioca. Mas no
interior, a atividade é intensa, composta por um grande grupo, a maioria acima dos
60 anos. Locutores anunciam bolas sorteadas por uma máquina, enquanto dezenas
de idosos tentam completar suas cartelas. Trata-se de um bingo clandestino.
Em condição de anonimato, um grupo
de frequentadoras confidencia torcer pela legalização dos bingos, pois não veem
motivo para a prática ser ilegal. Para elas, o lugar é uma fonte de lazer.
“Precisa legalizar, cada um sabe o que faz com seu dinheiro. Ninguém está se
aproveitando de mim.”, defende uma. “Venho aqui para me divertir, encontrar
amigas. Melhor do que ficar em casa vendo televisão. O bingo é a ‘social’ do
idoso”, brinca outra, fazendo referência à gíria que os jovens usam quando se
referem a festas.
Se estiver com sorte, o grupo de
idosas pode realizar seu desejo ainda este ano. Tramita
no Congresso o Marco Regulatório dos Jogos de Azar no Brasil. A proposta
visa legalizar e regularizar o funcionamento de cassinos, bingos, caça-níqueis e
jogo do bicho. O principal argumento para a medida é a receita que será gerada
com o jogo legalizado.
A proposta está prevista para ser
votada na próxima quarta-feira, 9, pela Comissão Especial de Desenvolvimento
Nacional do Senado. Por ser de caráter terminativo, se aprovada, ela seguirá
direto para apreciação na Câmara.
Caso seja aprovada, ela pode
legalizar, mais uma vez, os jogos de azar no país. Desde a época do Brasil
Império eles se alternam entre a legalidade e a clandestinidade. Legalizados
por Getúlio
Vargas em 1938, foram novamente proibidos em 1946,
por Eurico Gaspar Dutra. A proibição foi fruto de uma intensa campanha da
primeira-dama Carmela Dutra. Conhecida como “Dona Santinha”, Carmela era uma
católica fervorosa. Ela considerava os cassinos antros de perdição e convenceu
o marido a bani-los com a ajuda de uma série de reportagens do jornal Globo.
Disponíveis no acervo digital do jornal, elas retratam cassinos como “fábricas
do vício”. Chocado pelas reportagens, em abril de 1946 Dutra emitiu o decreto
que proibiu a exploração de jogos de azar no país. Agora, 70 anos depois, os
jogos voltam ao centro do debate em Brasília.
Um dos maiores defensores da
legalização é Magnho José, jornalista e presidente do Instituto Brasileiro Jogo
Legal (IJL). Nos últimos 17 anos, ele esteve engajado na campanha pela
legalização dos jogos. Ex-assessor da Lortej, ele fundou em 2001, junto com a
sócia Elaine Cardoso, o Boletim de Notícias Lotéricas (BNL), o maior banco de
dados do setor de jogos do país.
Em entrevista ao Opinião e Notícia,
ele explica que o Brasil tem um atraso histórico em relação à regulamentação dos
jogos, além de ter uma das legislações mais atrasadas do mundo para o setor.
Segundo José, a questão dos jogos deve ser discutida, pois a clandestinidade
não anula a prática. “No caso do jogo só temos duas opções: jogo legal ou
ilegal. A opção ‘não jogo’ é impossível, pois mais de 20 milhões de brasileiros
jogam todos os dias no ‘brasileiríssimo’ jogo do bicho, sem falar em outras
modalidades. Depois de 70 anos da última lei, ainda não enfrentamos a questão
da atualização do marco regulatório para esta atividade.”
Segundo estimativa do IJL, em 2014, o setor global de jogos movimentou US$ 488
bilhões. No Brasil, as apostas ilegais ficaram em R$ 19,9 bilhões. O valor é
maior do que o total de R$ 14,2 bilhões movimentados pelas apostas legais
(Loterias Caixa, Loterias Estaduais e jóqueis clubes). “Um estudo do BNL
estimou que o potencial do mercado de jogos de um país equivale a 1% do PIB. O
Brasil teve no ano passado um PIB de R$ 5,521 trilhões. Se considerarmos 1% do
PIB, o potencial mercado do jogo no Brasil é de R$ 55,2 bilhões anuais. Como a
média da tributação mundial do jogo gira em torno de 30% (somados todos os
tributos incidentes sobre estas operações), neste caso o Brasil deixa de
arrecadar anualmente cerca de R$ 16,5 bilhões em tributos com este setor.”
Risco de corrupção e
vício
Críticos contrários à legalização dos jogos têm como principal argumento o
risco das casas de aposta se tornarem ferramentas de lavagem de dinheiro. Eles
também afirmam que jogos de azar podem tornar as pessoas viciadas compulsivas
em apostas.
Estes dois pontos são refutados por José. Segundo ele, hoje, casas de aposta do
mundo todo dispõem de tecnologias que permitem um rígido controle sobre as
receitas locais, impedindo o uso da verba arrecadada para fins ilícitos.
“Discursos contrários que usam a patologia,
lavagem de dinheiro e ausência de controle como argumentos fazem parte do lobby
dos que pretendem manter o jogo na ilegalidade. Estas questões podem ser
facilmente superadas com as melhores práticas adotadas por dezenas de países
que regulamentaram este setor. Os contrários à legalização profetizam que os
jogos são propícios à lavagem de dinheiro, mas nunca foi explicado como seria
esta operação e as respectivas vantagens em lavar dinheiro com o jogo. Uma
análise nos percentuais dos tributos demonstra que estão profetizando uma
grande bobagem, já que existem atividades prestadoras de serviços em que o
‘lavador’ pagará apenas 16,33% em pagamento de tributos. Além disso, a
legislação brasileira obriga que prêmios acima de R$ 10 mil sejam informados pelos
operadores de jogos e loterias ao Conselho de Controle de Operações Financeiras
– COAF, órgão vinculado ao Ministério da Fazenda e responsável pela
fiscalização sobre lavagem de capitais no país. Portanto, lavar dinheiro em
jogo é caro e arriscado.”
Quanto à questão do vício, José
afirma que em vários países existem políticas eficazes de prevenção e combate à
compulsão em jogos de azar, como a ‘autoexclusão’, usada em alguns países da
União Europeia e da América do Sul. “Este mecanismo permite ao familiar do
jogador e ao próprio ludopata (nome dado aos jogadores compulsivos) se
inscrever em um cadastro no qual fica impedido de jogar durante um mandato de
dois anos. No Brasil não existem dados seguros sobre a situação devido à
clandestinidade, mas o comportamento patológico não é privilégio dos jogos de
azar. Pesquisadores estimam que de 1 a 3% da população têm uma relação doentia
com jogos.”
Para José, a votação do Marco
Regulatório dos Jogos dá ao país uma chance para amadurecer e enfrentar a
questão do jogo de forma pragmática, sem envolvimento de questões de ordem
moral ou religiosa. “É necessário legalizar e regulamentar, pois a proibição
leva ao jogo clandestino e o jogo clandestino leva à corrupção. Além disso, com
o jogo legal ganham Estado e sociedade.”
Enquanto o debate continua, o grupo
de idosas segue jogando, migrando de bingo cada vez que a Polícia Civil fecha
uma casa clandestina. “Eu digo que nós somos as mariposas. Você já viu quando
uma mariposa entra em casa, você apaga a luz e ela vai para outro cômodo. É
assim.”
Caro leitor, você acha que a
legalização dos jogos de azar será benéfica para o país? (Opinião
& Notícia - Melissa Rocha)