A
necessidade de novas fontes de arrecadação vai dar o empurrão que
falta para o Congresso retomar o debate sobre a legalização dos
chamados jogos de azar.
Lobistas entraram em cena na trilha dos debates sobre o pacto federativo, capitaneados pela Frente Parlamentar Mista pela Aprovação do Marco Regulatório dos Jogos no Brasil, tudo com aval da equipe econômica do governo.
O Ministério da Economia segue a orientação do presidente Jair Bolsonaro, que, durante “live” em abril, disse que cabe ao Parlamento se pronunciar sobre o tema.
O potencial arrecadatório com a exploração de jogos de cassino é relevante. Estudo feito pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), a pedido do então Ministério da Fazenda, em 2015, aponta que, com a regulamentação, pode movimentar, anualmente, R$ 174,7 bilhões, com arrecadação estimada em R$ 58,8 bilhões anuais.
O assunto veio à baila há duas semanas, em reunião no Ministério da Economia entre membros do governo e congressistas da Frente Parlamentar Mista em Defesa do Pacto Federativo.
O lado governista avaliou não ter condições de cumprir com o acréscimo de 1% de recursos da União ao Fundo de Participação dos Municípios (FPM) no primeiro decêndio de setembro.
A sugestão feita pela equipe econômica foi discutir o repasse de “dinheiro novo”. Ali, discutiram duas propostas. A distribuição de recursos do pagamento de 30% do bônus de assinatura do leilão do pré-sal a estados e municípios.
A medida foi incorporada no substitutivo da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 34/2019, aprovada no plenário da Câmara na última semana. A outra foi o jogo.
A legalização dos jogos foi proposta da equipe econômica pensando em um pacto federativo a médio e longo prazos. A partir daí, a informação começou a circular pelo Congresso e integrantes da bancada em defesa da aprovação do marco regulatório dos jogos engatou articulação que envolve a discussão com governadores e prefeitos.
O governador de Minas, Romeu Zema (Novo), tem enviado secretários para conversar com membros da frente, presidida pelo deputado João Carlos Bacelar (Podemos-BA). Hoje ou amanhã deputados da bancada vão encontrar com o prefeito do Rio, Marcelo Crivella (PRB-RJ), para discutir o assunto.
O movimento de proximidade a Crivella é estratégico para a bancada. O prefeito teria chamado os integrantes da Frente para a conversa, uma vez que a legalização pode fornecer receitas para o município, em grave crise fiscal.
Já a frente parlamentar identifica nele alguém que auxiliará a pressão sobre o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), para pautar o Projeto de Lei 442/1991, que legaliza os jogos.
O texto está pronto para ser colocado na ordem do dia, mas o demista é contrário à matéria, que, para alguns, prevê legalização mais liberal. Maia é defensor da liberação de cassinos em resorts, agenda defendida pelo ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio.
A limitação dos cassinos integrados a resorts é criticada por Bacelar. “É um investimento altíssimo que gira em torno de R$ 6 a R$ 10 bilhões.
Sem abrir o mercado, deixaremos de fora a formalização de mais de 300 mil postos de trabalho que atuam só no jogo do bicho, modalidade genuinamente brasileira”, adverte.
A liberação é polêmica e não é unanimidade entre os integrantes da bancada presidida pelo parlamentar.
O deputado Eduardo Bismarck (PDT-CE), outro membro da frente, concorda que é preciso discutir a legalização, mas sem o jogo do bicho. “Não me sinto confortável em liberar essa modalidade. Mas se o rico pode ter acesso aos cassinos, o pobre também deve ter. Acho que o debate pode ser iniciado com o pontapé inicial dos jogos em hotéis e resorts”, avalia.
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Falta estrutura para regulamentar
Apesar do aval da equipe econômica, propor a legalização do jogo não é o recomendável para o atual momento do país, alerta o titular da Secretaria de Acompanhamento Fiscal, Energia e Loteria (Sefel) do Ministério da Economia, Alexandre Manoel.
“Não temos estrutura regulatória adequada, com carreira própria, para liberalizar instantaneamente de uma hora para outra todos os jogos com aposta. Seria uma ação com alta probabilidade da gente dar um passo para frente na liberalização e dois passos para trás em um arredio da sociedade com os jogos”, pondera.
A pasta dispõe, atualmente, de 17 técnicos para a discussão do mercado de loterias e promoção comercial, sendo cerca de seis servidores de carreira.
O presidente do Instituto Brasileiro Jogo Legal, Magno José Santos, concorda que não existe estrutura para regulamentar e fiscalizar. Mas defende que a arrecadação com a liberação das diversas modalidades pode fornecer o financiamento da estrutura regulatória.
“É assim em todo o mundo. O que não deve é, baseado nessa premissa, não fazer. Estamos falando de um potencial de geração de 1,3 milhão de empregos. Não podemos legalizar apenas uma ou duas modalidades e deixar as outras na criminalidade, se não vamos fomentar estruturas verdadeiramente criminosas, como milícias”, sustenta.
Coordenador Acadêmico do Programa Executivo FGV/FIFA/CIES em Gestão de Esportes e único membro brasileiro da International Association of Gaming Advisors (Iaga), Pedro Trengrouse é a favor do PL 442.
“Seria um grande avanço para o Brasil. Mesmo que haja pontos importantes a serem revistos em discussão técnica mais profunda, que certamente acontecerá no Senado, é importante avançar nesse tema para que se possa, finalmente, regular o jogo no país. O caminho se faz caminhando, e a aprovação do texto seria um bom passo”, avalia.
O sucesso da legalização aposta passa pela criação de uma estrutura regulatória com poder de polícia e fiscalização, sustenta o especialista em direito econômico Fabiano Jantalia, sócio da Jantalia & Valadares Advogados e membro da Comissão Especial de Direito dos Jogos Esportivos, Lotéricos e Entretenimento da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)
“Não basta só legalizar. Em todos os países onde as modalidades foram reguladas ou legalizadas posteriormente, existem órgãos e estruturas institucionais e governamentais fortes e independentes para cuidar disso com modelos que estamos até acostumados, como as nossas agências reguladoras”, afirma.
Os jogos podem, hoje, ser legalizados pelo Congresso ou descriminalizados pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O ministro Edson Fachin é relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 563, ajuizada pelo PHS para questionar a proibição e definição como infração penal da exploração dos jogos por consumidores.
O partido solicita a liberação à iniciativa privada, sob argumentos de geração de empregos e arrecadação de tributos. Outra ação é o Recurso Extraordinário de Repercussão Geral 966.177, sob relatoria do ministro Luiz Fux, que contesta a inconstitucionalidade da proibição dos jogos por, na prática, permitir o monopólio estatal da exploração dos jogos pela Caixa Econômica Federal.
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Pacto “ludofederativo”
Na esteira da discussão de distribuição de recursos entre União, estados e municípios, o Congresso vai intensificar os debates sobre a legalização dos jogos de aposta. Confira seis argumentos contrários à medida e seus respectivos contra-argumentos:
Moral e costumes
Falso moralismo: as pessoas jogam. Vinte milhões de brasileiros apostam diariamente no centenário jogo do bicho. Dez milhões apostam todos os dias na internet e fazem apostas esportivas. Há também bingos e sorteios em entidades religiosas. Cerca de 300 mil viajam todos os anos para jogar em outros países.
Tradição jurídica
Legislação: entre os séculos XVII e meados do século XX, houve uma progressiva liberação dos jogos. A guinada ocorreu na década de 1940 e, hoje, o governo federal discute a desestatização da loteria instantânea, a Lotex. O próprio Estado está convencido do anacronismo da proibição.
Proteção social
Patologia: cerca de 97% dos jogadores não têm problemas com jogo. Dos 3% restantes, 1% é de casos sérios. De 0,1% a 2% são considerados patológicos.
Direito comparado
Vedação: o Brasil é um dos poucos países a vedar a exploração de jogos. Há diversos modelos de sucesso, como nos Estados Unidos, em Portugal e no Reino Unido. O jogo de aposta é legalizado e regulamentado em 97% das nações que formam a OCDE, e em 93% dos países do G-20.
Regulação
Arrecadação: o próprio recolhimento dos tributos pode financiar uma agência reguladora capaz de manter a estrutura de controle, regulamentação e fiscalização. Com a devida regulamentação para todas as modalidades e ambiente propício ao desenvolvimento, o mercado pode movimentar, anualmente, R$ 174,7 bilhões, com apostas per capita somando R$ 765,73, e arrecadação tributária, de R$ 58,78 bilhões.
Jogo de azar
Probabilidade: a chance de ganhar a Mega-Sena com um jogo simples, de seis números, é de uma em 50 milhões, aproximadamente. A chance de ganhar em uma roleta russa de cassino europeu com a aposta em um número é de uma em 37. A possibilidade de faturar um prêmio em loterias instantâneas é de cerca de uma em três. No Brasil, era de um em cinco. No caso do prêmio máximo, em geral, é de cerca de uma em 1 milhão. No país, os planos de emissão da Caixa previam o prêmio máximo para um a cada 6 milhões.
Fontes: FGV/Fifa/Cies, Instituto Brasileiro Jogo Legal, American Gaming Association (AGA) e Jantalia & Valadares Advogados.
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Risco grande de prejuízo
Os maiores interessados na legalização dos jogos de aposta deixam de fora uma parte importante do debate: os prejuízos que cassinos e casas de jogos trazem à população em decorrência do vício.
Para Carlos Salgado, psiquiatra e conselheiro da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (Abead), nos moldes do que ocorre com o cigarro e as bebidas alcoólicas, os danos provocados pela compulsão tenderão a trazer mais ônus para o Estado.
Isso porque atingem os jogadores e seu entorno familiar. Na visão do especialista, os lucros da atividade ficarão restritos a quem oferece os serviços.
Salgado explica que, o cérebro do jogador compulsivo funciona de modo semelhante ao de pessoas dependentes de álcool, cigarro e outras drogas.
Para o psiquiatra, legalizar os jogos fará com que mais pessoas que sofrem dessa tendência de comportamento se tornem dependentes. “A doença tem sede no sistema de reconhecimento e gratificação que temos naturalmente.
É comum usuários de jogo serem usuários, também, de álcool e outras drogas. A pessoa nasce com essa a tendência. É um sorteio na vida. Exceto pelo histórico familiar, não sabemos quem vai aderir ao jogo de forma semelhante a alcoolistas”, explica.
“A casa de jogo franqueada, liberada, propicia a chance de mais gente se expor e descobrir uma tendência oculta a essa adesão de forma patológica.
Do ponto de vista psiquiátrico, medidas restritivas são importantes”, acrescenta. Ainda de acordo com Salgado, a restrição de jogos no país faz com que a ocorrência de novos casos no Brasil seja menor.
“A tendência de liberar o cassino é sob o pretexto de emprego, economia e turismo, mas é uma porta para as pessoas ficarem presas no jogo.
Jogadores mais conscientes, dizem que só duas pessoas ganham: o dono do cassino e o mentiroso. Não tem como ganhar. A coisa é montada para que o sujeito perca. Há um domínio do resultado por parte da empresa”, alerta.
Laerte (nome fictício) perdeu R$ 300 mil em decorrência do vício em bingo. Por pouco não perdeu o emprego e a família. Integrante do Jogadores Anônimos do Brasil de João Pessoa (PB) ele afirma, com um certo orgulho, que está há sete anos sem jogar.
“A vida perde o valor. O aniversário de um filho, uma filha, uma data festiva, um compromisso religioso, tudo isso perde o sentido. Você até pode estar presente, mas, mentalmente, quer ir para a casa do jogo. Seus hormônios do prazer só funcionam assim”, conta.
Laerte lembra que todo o ambiente de locais de jogos é montado para que os jogadores permaneçam no local.
“No próprio código internacional das doenças está o jogo compulsivo. É uma doença emocional. Determinadas pessoas começam a fazer apostas, desenvolvem uma compulsão tão grande que ficam dominados. Chegou a um ponto em que eu não tinha mais responsabilidade. Corria do trabalho. No grupo, conheci companheiros viciados em outras modalidades. Pessoas que se separaram, alguns tentaram suicídio. Uns não tinham mais casa, família. Eu queria que o Congresso olhasse para esse outro lado. Somos minoria, mas sofremos muito”, desabafa.(Correio Braziliense - Diário de Pernambuco - O Estado de Minas Rodolfo Costa - foto: Arte/CB/D.A Press)