Previsto para ser
votado pelo plenário da Câmara dos Deputados no próximo mês, o Projeto de Lei
442/91, ao prever a legalização dos jogos de azar no Brasil – como cassinos,
jogo do bicho, apostas esportivas e bingos –, pode reduzir o número de crimes
praticados a partir deles se for elaborado corretamente, entre os quais a lavagem
de dinheiro, mas vem acompanhado de risco para a saúde da população, de acordo
com especialistas. O texto, considerado como o Marco Regulatório dos Jogos,
tramita em regime de urgência, na forma de um substitutivo apresentado pelo
deputado Felipe Carreras (PSB-PE) em nome do grupo de trabalho (GT) que, no ano
passado, analisou o tema na Casa.
Ele prevê tornar
legais todas as modalidades de jogos – o que inclui ainda os de habilidades e
corridas de cavalos – e está presente entre os assuntos polêmicos que os
bolsonaristas tentarão aprovar neste ano na Câmara. Segundo o relator e
apoiadores, a proposta estimularia o turismo e traria recursos ao país. Em
dezembro, a bancada evangélica atuou – sem sucesso – para bloquear a votação do
requerimento de urgência. Naquele mês, pelo Twitter, o pastor Silas Malafaia,
líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, publicou uma série de mensagens
no Twitter contrárias à legalização dos jogos de azar e chegou a dizer que o
presidente Jair Bolsonaro (PL) vetaria o projeto se passasse pelo Congresso.
“O Sr. Arthur Lira
[presidente da Câmara] defende interesses econômicos dos poderosos, que querem
aprovar a jogatina no Brasil, que destrói o ser humano e a família”, dizia uma
delas. Em outra publicação, escreveu: “A jogatina que Arthur Lira quer aprovar
no Brasil é para beneficiar a lavagem de dinheiro do narcotráfico e de
corruptos”. Posteriormente, na data da aprovação da tramitação do PL em regime
de urgência, Lira, de acordo com a Agência Câmara, pontuou: “O projeto será
votado em fevereiro, com o tempo necessário para que seja maturado, discutido,
para notarmos a quem interessa regularizar jogos, a quem não interessa
regularizar jogos; quais são os seus efeitos, quais são as suas causas; o que é
bom e o que é ruim”.
Na visão de Lisiane
Bizarro, professora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFGS) e integrante da Sociedade Brasileira de Psicologia (SBP),
o projeto é “anacrônico”. “Seria muito apropriado talvez para a década de 50 do
século passado. Mas o que a gente sabe hoje sobre os efeitos populacionais, em
termos de saúde mental, da privação social que os jogos produzem também na
exacerbação do uso, em frequentar esse ambiente repetidamente. E um pouco
também de quem se beneficia com isso. Quem detém os jogos e quem se beneficia
com isso diretamente e às custas de que parte da população? Então a gente deve,
talvez, pensar nas populações que são vulneráveis, especialmente à adição a
jogos”, completou.
De acordo com a
professora, não existe qualquer indicação de que a legalização dos jogos de
azar traga algum benefício psicológico social “a curto, médio ou longo prazo”.
Pelo contrário, diz ela, “é da natureza do jogo que ele seja uma condição que
produza adição. Então ele pode ser uma experiência isolada, de diversão, um
momento específico ou ter um uso ocasional, mas ele contém necessariamente
elementos que induzem a repetição e a criação de um hábito de uso desse jogo”.
Os planejadores dos
jogos de azar, acrescenta Bizarro, se aproveitam de uma característica inata ao
ser humano de distorcer a maneira pela qual o indivíduo percebe as perdas e
ganhos, para construi-los. Dessa forma, proporcionam mais derrotas do que
vitórias aos participantes. Além disso, existem grupos, como os das pessoas de
baixa renda, as de baixa escolaridade, jovens e idosos, que são mais
vulneráveis a desenvolver adição a esses jogos. “São pessoas que têm um tempo
disponível para dedicar a uma atividade assim. Entretanto, também têm
dificuldades, ao se tornar um hábito, de se desvencilhar disso. Quais são os
prejuízos? Para esses indivíduos, além das perdas financeiras que envolve esse
tipo de atividade, tem também o tempo que é dedicado a essa atividade, que vai
privar essa pessoa de outros contatos sociais e outras atividades que ela
estaria fazendo, porque ela está gastando esse tempo naquele atividade ali”,
explica a integrante da SBP.
Possibilidade de
apostar pela internet e preço baixo para se fazer uma aposta, por exemplo, são
características que aumentam o risco de a pessoa desenvolver adição em jogos,
visto que os tornam mais acessíveis. Na avaliação da professora também, é
difícil se proteger dos efeitos psicológicos dos jogos de azar e não há
evidência de que, ao aprender ou divulgar sobre esses efeitos, os cidadãos
estariam protegidos. E, para pôr fim a uma adição a jogos, há um processo longo
pela frente. “Não vai ser do dia para a noite ou numa tentativa isolada que ele
vai fracassar ou ser bem-sucedido. Então é necessário vários esforços até
descobrir um momento e uma maneira que essa pessoa passe a sair dessa condição.
Existe atendimento técnico especializado, sim, que pode ajudar. Psicoterapia é
uma das alternativas viáveis e importantes que o sistema público de saúde
também oferece. Mas às vezes as pessoas encontram a sua própria saída de outras
maneiras. Criando novos hábitos, que vão substituir e que sejam mais benéficos
para elas”, diz Bizarro.
Criminalidade
Do ponto de vista da
segurança pública, por outro lado, o Projeto de Lei pode ser positivo. Segundo
o professor de direito processual penal Gustavo Badaró, da Universidade de São
Paulo (USP), os jogos de azar continuam sendo explorados “ilegalmente e sem
nenhum controle”. Dessa forma, acredita que “entre uma proibição total, mas com
a prática ilegal generalizada, de um lado, e uma regulamentação com controle e
fiscalização efetiva de outro, esse segundo cenário, se nós tivermos uma
legislação bem desenhada sobre os aspectos de prevenção, controle e punição,
pode reduzir a criminalidade dessa ambiência dos jogos de azar”.
Atualmente, a Polícia
Federal (PF) possui nove procedimentos em andamento envolvendo o artigo 50 da
Lei de Contravenções Penais, que proíbe o estabelecimento e exploração de jogos
de azar em lugar público ou acessível ao público. São três no Rio de Janeiro,
três em São Paulo, dois no Paraná e um no Amazonas. Nos últimos cinco anos, a
corporação instaurou 28 inquéritos relacionados ao mesmo artigo. Em relação a
peças/acessórios/máquinas de caça-níquel contrabandeados, houve apreensão de
2.201 itens entre 2017 e 2021.
Na visão de Badaró,
porém, “obviamente que o legislador não está pensando, e aqueles que defendem a
legalização dos jogos de azar, incluindo aí jogo de bicho, exploração de
cassinos, bingos e apostas, ele não está pensando em fazer isso para melhorar a
segurança pública”. “Porque nós temos que ter é uma preocupação para a
consequência que isso pode gerar negativa, evitar que com a legalização isto
piore a segurança pública, ou seja, isso leve a um aumento da prática de crimes
causadas por esse ambiente da liberação dos jogos”.
Nesse sentido,
afirma, na tramitação do Marco Regulatório dos Jogos, os parlamentares
precisarão estabelecer critérios “rígidos” sobre quem poderá obter a concessão
para explorá-los. Por exemplo, que sejam empresas constituídas no Brasil, com
sócios sem antecedentes criminais, e que respeitem capital social mínimo. “Num
segundo ponto, notadamente no que diz respeito à lavagem de dinheiro, impor a
esses exploradores, em regime de concessão, regras bastante rígidas de registro
das operações, registros dos clientes, registro de todos os ganhos e
comunicação aos órgãos oficiais e, por fim, prever uma disciplina que continue
a punir os jogos ilegais. Porque é uma legalização mais restrita, em cada
estado, a depender da população, vai poder ter um, dois ou três cassinos e
assim por diante”, completa.
Histórico dos jogos
de azar
A prática ou
exploração dos jogos de azar no Brasil foram proibidas pelo Decreto-Lei
9.215/1946, assinado pelo então presidente, general Eurico Gaspar Dutra, que os
classificava como “nocivos à moral e aos bons costumes”. Entres os motivos que
levaram Dutra a tomar a medida, estariam o desejo de eliminar os vestígios da
ditadura do Estado Novo, visto que Getúlio Vargas foi o grande incentivador dos
cassinos, e pressão feita pela primeira-dama, Dona Santinha, que era católica
e, assim, tinha aversão ao ambiente dos salões de apostas.
Antes da proibição,
entre 1930 e 1940, o país chegou a ter 70 casas do tipo, na era de ouro dos
cassinos. No final da década 30, Carmen Miranda era a artista mais procurada
pelos localizados no Rio de Janeiro. Com o decreto de Dutra, cerca de 55 mil
pessoas perderam o emprego, e os jogos de azar permaneceram na ilegalidade até
1993, quando a Lei Zico – aperfeiçoada em 1998 pela Lei Pelé – autorizou o
funcionamento de bingos comerciais, para financiar entidades desportivas.
Em 2000, porém, o
presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) sancionou a Lei 9.981 (Maguito),
que proibiu os bingos no território nacional novamente, deixando que as
empresas funcionassem apenas até o fim das licenças. Já em 2004, em meio aos
acontecimentos que levaram à instauração da Comissão Parlamentar de Inquérito
(CPI) dos Bingos – cujo objetivo era “investigar e apurar a utilização das
casas de bingo para a prática de crimes de lavagem ou ocultação de bens,
direitos e valores, bem como a relação dessas casas e das empresas
concessionárias de apostas com o crime organizado” – o presidente Lula (PT)
editou uma Medida Provisória (MP) que cassou a licença dos 1,1 mil bingos que
ainda funcionavam. (SBTNews – Guilherme Resck)