GANHAM O ESTADO E A SOCIEDADE

Debate Folha de São Paulo: O projeto que prevê a legalização do jogo é adequado?

SIM – Jogo legal com regras claras

Benefícios superam em muito desvantagens elencadas por grupos contrários

Magnho José
Jornalista, é presidente do Instituto Brasileiro Jogo Legal (IJL) e editor do portal BNLData

Cada indivíduo tem uma opinião sobre a legalização dos jogos. É um daqueles debates inevitáveis realizados entre amigos, políticos, religiosos e sociedade. Os jogadores discutirão sobre a hipocrisia do Estado em insistir no controle do livre-arbítrio sobre como gastar o próprio dinheiro. É um assunto palpitante e polarizado, mas realmente não deveria ser.

O jogo ilegal existe enquanto o legal não existir. O jogo ilegal não é a razão pela qual as pessoas jogam, mas sim pela simples realidade da demanda e oferta. Sem leis, os jogos ilegais oferecem ao público os meios para praticar o que desejam, mas, infelizmente, eles criam negócios para o crime. A ilegalidade alimenta a corrupção e, como nos ensina o ministro André Mendonça, do Supremo Tribunal Federal, “onde não há Estado há crime organizado”.

Ao legalizar todas as formas de jogo —ainda faltam os caça-níqueis—, a demanda do mercado reduzirá o número dos não regulados. Os jogadores migrarão naturalmente para o jogo que apresente mais segurança e mais chances de ganhos. Esse processo aconteceu em todos os mercados que legalizaram o setor depois de longos períodos de proibição.

Os contrários sempre se valem de teses de grupos religiosos para elencar patologia, lavagem de dinheiro e ausência de controle como argumentos para manter o jogo na ilegalidade. Esses temas, explorados através de notas técnicas ultrapassadas, foram todos contemplados pela proposta que cria o marco regulatório aprovado na Câmara.

Os deputados do Grupo de Trabalho dos Jogos na Câmara, criado para atualizar o texto do PL 442/91, promoveram reuniões com Procuradoria-Geral da República, Polícia Federal, Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), Ministério da Economia e Receita Federal —em nenhum momento os representantes destes órgãos se opuseram à legalização. Pelo contrário, várias propostas contidas no relatório final foram introduzidas a partir de sugestões técnicas, inclusive as recomendações adotadas pelo Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (Gafi).

Uma delas prevê que todo brasileiro que desejar apostar deverá informar o número de inscrição no CPF para atender à implantação do “cashless”, sistema que impede a utilização de moedas ou cédulas de dinheiro em espécie nos jogos de apostas. Em um ambiente sem dinheiro, com o jogador identificado e toda movimentação financeira registrada, inibe-se a atratividade para a lavagem de dinheiro. Outra recomendação do Gafi é a notificação obrigatória ao Coaf de prêmios superiores a R$ 10 mil.

A identificação também permite a aplicação do programa de Registro Nacional de Proibidos (Renapro), destinado às pessoas que estejam impedidas de jogar devido à ludopatia. A inscrição poderá ser feita de forma voluntária, pelo próprio ludopata, familiar ou Ministério Público. A criação da “Política Nacional de Proteção aos Jogadores e Apostadores”, que prevê a implantação de programas e ações de jogo responsável, será financiada através do repasse de 6% dos recursos arrecadados pelo próprio jogo.

Em resumo, o debate sobre a legalização do jogo no Brasil não deve ser somente sobre os investimentos internacionais, as receitas de novos impostos nem os milhares de empregos que criará e formalizará. Esses argumentos são óbvios e já não estão mais em debate. O verdadeiro desafio é a criação e o estabelecimento de leis e regulamentos que permitam aos cidadãos exercerem seu desejo de jogar sob os olhos atentos de regras claramente definidas pelo Estado e sua efetiva aplicação. (Tendência e Debate – Folha de S.Paulo – 12.03.2022)

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NÃO – Porta aberta para a criminalidade

Brasil não tem recursos humanos nem tecnológicos para estancar sanha ilícita

Vilson Antonio Romero
Jornalista e auditor fiscal aposentado, é presidente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip)

perspectiva de abertura de mais de 60 cassinos e quase 6.000 bingos —e de autorizar mais de 300 operações do jogo do bicho— fez 246 deputados (menos da metade dos 513) olvidarem os impactos negativos e o custo social do projeto de lei 442/91.

Até a tragédia da serra fluminense entrou no parecer quase chantagista do relator ao, no momento derradeiro, incluir entre mais de uma centena de artigos a destinação de 5% da Cide-Jogos —de módica alíquota de 17%— para “ações de reconstrução de áreas de risco ou impactadas por desastres naturais e ações para construção de habitações destinadas à população de baixa renda remanejadas de áreas de risco ou impactadas por desastres naturais”.

O projeto de lei passou, apesar da oposição quase ecumênica (católicos e evangélicos), de órgãos de segurança e controle das contas públicas e de médicos e terapeutas.

Num debate precário, com atuação parlamentar híbrida, a derrubada do decreto-lei 9.215/46, do então presidente Gaspar Dutra, não põe por terra as premissas fulcrais: “A tradição moral, jurídica e religiosa do povo brasileiro é contrária à prática e à exploração de jogos de azar e que, (…) daí, decorreram abusos nocivos à moral e aos bons costumes”.

No outro lado, está o pântano da “money laundering”, ou a lavagem de dinheiro, que é “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal” (lei 12.683/12).

O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) alertou no início do século que esses delitos do crime organizado, em conluio com tráfico de drogas e armas, prostituição e corrupção, movimentam mais de US$ 2 trilhões anuais no planeta e servem para financiar, entre outras coisas, terrorismo e armas de destruição em massa.

O Brasil não dispõe de recursos humanos e tecnológicos para estancar a sanha criminosa, agudizada pelo tráfego digital de valores e criptomoedas, onde a ação dos cibercriminosos na “dark web” já não tem controle. Sem contar a ludopatia, já incluída pela Organização Mundial da Saúde na Classificação Internacional de Doenças (CID). Sob a CID-10-Z72.6 (mania de jogo e apostas) e a CID-10-F63.0 (jogo patológico) estão embutidos custos sociais já estimados pelo professor Earl Grinols, da Baylor University (EUA), em “The Hidden Social Costs of Gambling” (“Os Custos Sociais Ocultos do Jogo”).

Um ludopata, além de destroçar patrimônio e universo familiar, pode custar ao Estado mais de US$ 9.000 anuais per capita —ou, a cada dólar arrecadado, três serão gastos com custos sociais. Segundo estimativa do movimento Brasil sem Azar, poderão, em pouco tempo, ser mais de 100 mil jogadores compulsivos no Brasil, com um custo elevadíssimo no tratamento e recuperação.

Com esses argumentos, alio-me à CNBB, à Associação Nacional dos Juristas Evangélicos (Anajur) e a dezenas de movimentos sociais que rejeitam a proposta.

Mesmo que haja agência reguladora, cadastro de jogadores, tributação de prêmios e rateio com entes subnacionais, os multimilionários de Atlantic City, Las Vegas e Oriente Médio criarão um “Estado paralelo” fora da lei, com um custo social muito maior que a liberação poderia propiciar em turismo, empregos e arrecadação neste Brasil tão desigual.

Há outras prioridades, como tributar lucros e dividendos, as grandes fortunas ou reduzir a regressividade fiscal. Mas a decisão caberá aos 81 senadores: o Brasil abrirá, de fato, a porta para a jogatina oficial incentivada e a criminalidade? (Tendência e Debate – Folha de S.Paulo – 12.03.2022)