A legalização dos jogos
de azar, prevista em texto-base aprovado na madrugada desta quinta-feira (24)
pela Câmara dos Deputados, não representa um risco significativo de aumento de
práticas de lavagem de dinheiro, contanto que acompanhada por mecanismos
eficazes de controle e fiscalização. É o que afirmam especialistas em Direito
Penal e segurança pública consultados pela Folha.
O projeto original,
de 1991, foi assinado pelo deputado Renato Vianna (MDB-SC). Em sua retomada, o
relatório ficou a cargo do deputado Felipe Carreras (PSB-PE), que fez uma série
de concessões para tentar diminuir a resistência à proposta.
O texto-base foi
aprovado por 246 votos favoráveis, contra 202 contrários, e seguirá para o
Senado.
A proposta busca
regulamentar jogos de cassino, bingo, jogo do bicho, turfe [corrida de cavalo]
e jogos online.
As atividades deverão
ser reguladas e fiscalizadas pelo Ministério da Economia, que, para isso,
poderá firmar acordos com órgãos federais, estaduais ou municipais. O Poder
Executivo também fica autorizado a criar uma agência reguladora.
As entidades
operadoras dos jogos deverão manter um sistema de gestão para registro e
acompanhamento dos jogos, assim como dos pagamentos. O Ministério da Economia
terá acesso ao servidor espelho e à base de dados desse sistema.
Segundo o texto, fica
proibido o pagamento das apostas em cédulas ou moedas.
O substitutivo também
impõe barreiras para que pessoas que tenham condenações por improbidade
administrativa, sonegação fiscal, prevaricação, corrupção, peculato ou qualquer
ilícito penal que vede o acesso a cargos públicos não possam exercer função em
entidades operadoras dos jogos.
“Não vai ter como uma
pessoa administrar um empreendimento de jogo se ela não for idônea. Além disso,
a Receita Federal vai ter em tempo real toda movimentação de cada jogador.
Qualquer indício de corrupção, de lavagem de dinheiro, o governo vai ter na
palma da mão os instrumentos necessários para tomar as medidas cabíveis”,
afirma à Folha o relator.
Professor de Direito
Penal na USP (Universidade de São Paulo), o advogado Pierpaolo Cruz Bottini não
vê o risco de lavagem de dinheiro como um empecilho para a legalização, caso
sejam instituídas medidas efetivas para coibir a prática.
“É preciso mudar a
lei da lavagem para inserir os cassinos como entidades obrigadas a fazer a
prevenção desse crime, e a comunicar o Coaf [Conselho de Controle de Atividades
Financeiras] quando for identificada uma operação suspeita”, diz.
Bottini defende a
necessidade de regulamentar o que seria considerada uma operação suspeita nesse
setor, como os operadores serão cadastrados e como as atividades dos clientes
serão supervisionadas.
O advogado Gustavo
Badaró, professor de Direito Processual Penal na USP, concorda que é possível
legalizar os jogos com mecanismos de controle eficientes. “A questão é saber se
esse controle vai ser estabelecido de uma forma adequada, se haverá um acompanhamento
sobre novas práticas [de lavagem de dinheiro] e, principalmente, se os cassinos
vão cumprir seus deveres de registrar todas as operações realizadas por todos
os clientes”, diz.
Delegado aposentado e
ex-chefe da Draco (Delegacia de Repressão ao Crime Organizado) no Rio de
Janeiro, Cláudio Ferraz diz que apoia o projeto de lei, caso estruturado de
forma correta, garantindo a fiscalização.
“Vai se tirar da
informalidade uma atividade altamente comprometedora em termos de lisura,
provocadora de corrupção. O Estado tem que se preparar para fiscalizar e
investir os recursos, inclusive no próprio fortalecimento das instituições de
controle”, afirma.
Presidente da Anfip
(Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal), o jornalista e
auditor fiscal aposentado Vilson Romero é contrário à legalização. Ele diz que
os órgãos de fiscalização enfrentam uma carência de estrutura e que há o risco
de o controle ser insuficiente.
“Não sei se há
condições, de fato, para controlar 1 milhão de pessoas. Será que vamos ter um
cadastro nacional de apostadores confiável? A Receita tem um déficit de mais de
5.000 auditores para fiscalizar 18 milhões de CNPJs. Imagina criar mais essa
estrutura”, diz.
Apoiadores do projeto
defendem que a legalização geraria milhares de empregos e bilhões de reais em
receita. Romero, por outro lado, argumenta que criaria incentivos para a
lavagem de dinheiro, fomentaria redes de prostituição e tráfico de drogas e
aumentaria o risco de ludopatia (vício em jogos).
O advogado Pierpaolo
Bottini reconhece que falta estrutura ao Coaf, mas afirma que o Estado pode se
adequar às necessidades. “O importante é estruturar o Coaf. Não precisa ser
material, precisa de capacidade de processamento de dados. O cassino vai gerar
impostos e uma parte disso poderia estruturar o órgão”, diz.
A eventual
legalização dos jogos de azar também suscita dúvidas sobre um possível
fortalecimento de grupos violentos que existem em alguns lugares do país. É o
caso do Rio de Janeiro, há décadas palco de disputas sangrentas pelo espólio de
conhecidos bicheiros. Relações entre o jogo do bicho e as milícias também já
foram levantadas por investigadores e publicadas na imprensa.
Milícias marcam
cotidiano do Rio
Historicamente,
membros de grupos de extermínio, semente das milícias, costumavam fazer a
segurança dos grandes bicheiros, lembra o sociólogo José Cláudio Alves,
estudioso dos grupos paramilitares há mais de 20 anos.
“As milícias fazem
parte desse histórico porque dominam quais são os territórios de cada um, os
ganhos de cada um, e acabam se transformando também em um ator nesse cenário.
Deixaram de ser apenas os que recebiam ordens e passaram a ter a sua própria
voz, a se movimentar, principalmente quando há disputa dentro da família [pelo
espólio]”, diz.
Alves defende uma
discussão mais aprofundada sobre o tema, e afirma que uma legalização dos jogos
sem considerar esse cenário é temerária.
“É fácil dizer no
papel que resolveu o problema. Mas uma legalização sem considerar quem é a
estrutura de segurança pública, os milicianos, os grupos de extermínio, e como
sempre atuaram ao lado do jogo do bicho, é algo muito temerário, inseguro. Não
me dá nenhuma certeza que de fato vai conseguir controlar e beneficiar o bem
público”, diz.
O sociólogo alerta
que a legalização pode representar o fortalecimento de uma estrutura e de
grupos que hoje são ilegais. Alves lembra que os bicheiros sempre agiram por
meio do suborno, e ressalta que eles poderiam colocar “laranjas” à frente dos
negócios, simulando idoneidade.
“Eles não são controlados,
não prestam conta, têm um universo próprio. Se não souber lidar com isso, vai
fazer algo de fachada, não vai conseguir estabelecer um sistema de fiscalização
e controle sobre eles. Facilmente vão poder burlar ou subornar”, afirma.
Alves questiona, por
exemplo, se as conhecidas famílias de bicheiros do estado aceitarão abrir mão
dos negócios subitamente. “Eles vão simplesmente aceitar abrir mão dos seus
ganhos? Ou vão permanecer dentro da estrutura do estado, com sua dimensão de
suborno?”.
O sociólogo também
levanta dúvidas sobre a capacidade de órgãos de controle fiscalizar esses
grupos.
“Hoje não se
consegue, por exemplo, fazer monitoramento de ganhos de patrimônio dos grupos
envolvidos com milícias, com tráfico de drogas, com jogo do bicho”, diz. “Se
não tem capacidade de monitorar relações com familiares, amigos, com gente que
vão colocar como testa de ferro, não vão conseguir fazer isso numa estrutura
legal. Precisaria haver um sistema muito bom para haver essa fiscalização.” (Folha
de S.Paulo – Ana Luiza Albuquerque – Rio de Janeiro)